Tom

2.1

Tom sentia-se melhor da ressaca que lhe assombrou pela manhã. As brisas da granja, as cervejas geladas e o churrasco o tinham feito esquecer as consequências da noite anterior. Dirigiu tranquilamente até em casa para tomar banho e ir para a Ovelha Negra, onde provavelmente ficaria esperando Alice por mais ou menos uma hora, dada a combinação entre seu hábito por chegar cedo nos lugares e a demora para a sua amiga se arrumar.

Pronto, logo foi à sua segunda casa. Encontrou Reginaldo, o garçom mais antigo da casa, arrumando justamente sua mesa. Realmente, não tinha como Tom não se sentir em casa estando na Ovelha Negra. Pediu uma cerveja e sabia que era o pedido certo. Nos vários anos em que morava ao lado do bar, nunca tinha vivenciado uma garrafa que não viesse na temperatura satisfatória. Isso, junto à música bem selecionada e um público que admitidamente preferia passar a noite sentado em suas mesas conversando sobre coisas que geralmente não eram do interesse geral, tinha feito a fama do estabelecimento. Lúcia, a cozinheira, também caprichava e suas habilidades iam desde um arroz com feijão perfeito aos melhores petiscos de boteco. Embora a Ovelha Negra tivesse um ar um pouco mais requintado do que o de um boteco, o dono, seu Juan, sabia que nada acompanhava melhor uma cerveja do que uma porção bem feita de calabresa com fritas.

Tom não tinha fome. Seu maior desejo era de poder contar tudo que havia acontecido com Marina para Alice. Aqueles acontecimentos estavam perturbando a cabeça e o coração dele, causando um sofrimento imenso. A cada pessoa que entrava pela porta do bar, Tom procurava alguma semelhança com sua melhor amiga. Esse ritual demorou três garrafas de cerveja, o suficiente para amenizar um pouco a dor em seu coração, mas não era o suficiente. Ele precisava de mais. Já tinha chegado à conclusão de que não era a bebida que o faria esquecer tudo. A bebida, por sinal, já o tinha causado uma ressaca pesada. Alice entra pela porta.

2.2

Finalmente. A pessoa de quem Tom mais precisava tinha chegado. Ninguém melhor do que ela para entender os sentimentos dele e o comportamento feminino. Ela sentou-se e pediu um chopp. Sempre discutiram se a suavidade do chopp poderia ser superior ao sabor de uma cerveja. Cada um preferia sua manifestação da bebida que julgavam superior a qualquer outra.

Tom foi abrindo o jogo logo, como era habitual:

“Me ferrei. Depois de tanto tempo de dedicação, onde eu tava quase entregue, ela me larga. Já tava perto de propor casamento a ela, estava começando a pensar nisso e tudo mais. Não sei como isso aconteceu. Dois anos e eu não tive a capacidade de perceber a mudança no comportamento dela. E que porra é essa de relacionamento que começou ANTES do meu? Como foi possível ela esconder isso por tanto tempo? E para que diabos ela queria alguma coisa comigo então?  Não era dinheiro, ela tinha mais do que eu. Não era prestígio, pois eu só conheço praticamente o povo do bar, algumas pessoas com quem trabalhei e uns amigos da internet. O que pode ter acontecido??”

Alice não respondeu prontamente. Estava tão impressionada quanto Tom pelo ocorrido. Marina era bastante interessante e ela e Tom faziam um bom casal. Por não ser efusiva, não vivia demonstrando seu amor, mas no fundo as pessoas acabavam por sentir que o relacionamento deles daria certo. Mas parecia que ela sabia manipular bem suas emoções e sua imagem perante os outros, incrível isso. Ela retomou seu papel de melhor amiga e o tentou acalmar:

“Tom, sei que foi uma puta sacanagem dela. Sei também que é algo bastante estranho e não conheço outro caso em que isso tenha acontecido. Porém, acho que a solução é a mesma para qualquer caso: tentar esquecê-la ocupando a cabeça com outras coisas, conhecendo alguém ou escrevendo um livro. Dizem que funciona.”

Aparentemente, não era o que Tom esperava ouvir, embora as alternativas fossem escassas.

“Porra, como tu me dizes isso? A última vez que fui tentar esquecer dela, tomei meia garrafa de absinto e acordei com uma das piores ressacas da minha vida. Não sei nem como eu vou achar alguém. Tu sabes que não é fácil pra mim, não saio numa balada como qualquer um e vou me agarrando com qualquer maria sem dente que aparece. É preciso conhecer, aprender a admirar e apreciar. Meus últimos relacionamentos começaram sentados nessa mesa aqui. Tampouco pretendo mudar meus hábitos de prospecção, embora eu reconheça que uma distração hoje seria muito bem vinda.”

Alice entendeu o que Tom queria, mas não havia muito que pudesse fazer.

“É, mas não tem como eu ligar para alguma amiga minha num domingo à meia noite para vir num bar. As que prestam ou devem estar dormindo, ou já estão em outro bar. Provavelmente quem estiver disposta a sair de casa essa hora estão muito desesperadas, e você sabe que não é o tipo de mulher que o velho Tom aprecie, – ele deu um sorriso- então é melhor você ter calma.”

Tom chamou Reginaldo e pediu mais uma rodada para ele e Alice. Enquanto o garçom vinha, deu uma olhada para ver quem estava na Ovelha Negra nessa noite. Quatro mesas, além da dele, estavam ocupadas: uma por José Artur, o alcóolatra que estava todos os dias no bar e que sua bebedeira eterna era paga pela aposentadoria do governo, o casal Sidney e Derci, que eram bons frequentadores, embora fossem casados, cada um com uma pessoa diferente, e duas mesas com pessoas desconhecidas. A primeira, ocupada por um grupo de 4 amigos que pareciam entretidos demais em suas conversas, fossem-sobre-o-que-fossem. A segunda tinha três senhoritas. Não pareciam ser da cidade, pois estavam se deliciando com drinks que geralmente estavam no cardápio só para cumprir tabela.

Elas eram, para Tom, razoavelmente bonitas. A que mais se destacava tinha cabelos que estavam no processo de deixarem de ser castanhos, voltando ao preto original. Algumas pessoas iriam contra isso, mas ele achou o efeito bastante interessante. Tom sentia-se um pouco incomodado porque estavam conversando muito alto e cantando as músicas que estavam tocando no sistema de som do bar. Ao invés de ficar tão irritado, como seria o normal, ele viu o sorriso no rosto delas, principalmente no daquela que ele tinha intitulado mentalmente ‘líder’. Alice permanecia calada enquanto percebia seu amigo observando atentamente o trio de senhoritas se divertindo sem nem perceber, ou mostrar perceber, que estavam sendo julgadas a cada ação. Tom, depois de alguns minutos, chegou à conclusão:

“É, eu queria recuperar esse prazer em viver que elas têm.” Acabou de tomar seu último gole de cerveja e se despediu de Alice:

“Vou para casa. Preciso descansar um pouco e botar os pensamentos em ordem. Vou ficar melhor, te garanto.”

Abraçou Alice e foi embora. A conta dele na Ovelha Negra só era paga no final do mês.

Tom

Prólogo parte 1
Era mais uma noite chuvosa para ele. Noites chuvosas significavam a paz de seu lar e alguma coisa para o relaxar. Geralmente, música alta e alguma cerveja. Porém, essa noite não era igual às muitas outras. Sentia-se impotente, incapaz de superar seus próprios sentimentos e ter forças para seguir a vida. O ritmo da música estava mais lento, o clima, mais denso. Fez uso de um copo baixo e nele derramou absinto. Transformou a fada verde numa espécie de uísque e a apreciou. 

A dor era grande, a perda também. Ele precisava de uma anestesia para tanto sofrimento e, com certeza, a solidão não ajudava. Por mais que já fosse acostumado a viver só, a ter sua casa organizadamente desorganizada, ele precisava de alguém por perto para tomar conta.

Manteve o mesmo ritmo a noite toda: bebia um copo de absinto a cada disco que ouvia. Estava sentado em uma poltrona virada intencionalmente para a janela. Observou os pingos batendo na janela enquanto lia as mensagens que trocaram pela internet e pelo celular. Depois de várias doses amargas de realidade, cedeu para o cansaço mental propiciado pelo absinto. Dormiu.

Prólogo parte 2
Seu trabalho era predominantemente solitário. Fazia quase tudo que necessitava em casa, no seu até então confortável lar. Investiu quae tudo que ganhava neste apartamento, pois era ao mesmo tempo o lugar onde dormia e onde trabalhava, poucas coisas importavam mais.

Mantinha uma restrita lista de amigos com os quais compartilhava seus principais interesses: música, bebidas, comidas e pessoas. Um de seus maiores interesses, quase que paradoxal ao fato de gastar boa parte do tempo sozinho, era observar as pessoas. O fazia das mais diversas maneiras, desde o momento em que fazia compras no supermercado a dois quarteirões de seu apartamento, a ver como as pessoas se relacionavam no que era o maior bicho de sete cabeças da época: a internet e suas redes sociais.

Por mais natural que fosse a evolução das maneiras de se relacionar em grupos, que foi alavancada pelo forte desenvolvimento das telecomunicações, era comum ver vários indivíduos protestando sobre privacidade, exposição indesejada e outras coisas que ele julgava não ter muito nexo. O pensamento era simples: você exibe o que quer. Na internet, ninguém estava obrigando as pessoas a dizerem coisas que eram para ser segredos. Você era responsável por todas suas ações, não tinha o que discutir.

Ele tinha tornado seu dia a dia bastante imprevisível. Trabalhava onde quisesse e na hora que lhe fosse mais conveniente. Isso sem nunca atrasar nem desapontar nenhum cliente. Seu trabalho era observar como os grupos de pessoas viviam e no que isso refletia para os seus contratantes. Muitas vezes era um trabalho chato, repetitivo e estatístico, entretanto lhe agradava muito o fato de ser pago para fazer uma de suas atividades preferidas: observar os diversos comportamentos das pessoas.

Seus amigos advinham principalmente da internet. Antes os conhecer pessoalmente já tinha trocado milhares de mensagens com eles, fazendo com que a primeira vez que se reunissem fosse só a solidificação de relacionamentos que já tinham começado há bastante tempo. E para ele era algo lógico: o mundo digital era o mesmo do mundo ‘real’. A ausência do contato físico não era tão significativa assim, pois as conversas eram as mesmas, embora fosse complicado em alguns momentos explicar algumas expressões e sentimentos.

Sua vida amorosa era alimentada por relacionamentos iniciados quase sempre no mesmo lugar: a Ovelha Negra, um aconchegante bar que ficava no mesmo quarteirão que o seu e que sua proximidade casava perfeitamente com a indisposição de se movimentar para locais longínquos que geralmente lhe ocorria. Era habitué do bar, conhecia os 4 garçons e a caixa pelo nome, uma de suas melhores amigas era a gerente.

Lá, tinha sua mesa quase que cativa. Aparecia pelo menos três vezes por semana, nem que fosse só para tomar o último drink antes de dormir. Estava tão em casa na Ovelha Negra quanto em seu apartamento. Não se sentia confortável em ter a iniciativa em relação às senhoritas que o interessavam. Geralmente, preferia manter-se como uma pessoa misteriosa, porém inteligente e bem humorada. A vida, principalmente no aspecto amoroso, não lhe tinha sido muito bondosa. Ele já sabia que as coisas não eram justas e que só restava fazer o certo para algum dia o certo acontecer com ele.

Hoje, em sua casa, dormia com o coração apertado porque a quem ele mais tinha dedicado atenção e carinho nos últimos meses o tinha trocado por outro. Antoine, o Tom, esperava que seu coração sarasse com o absinto e o tempo. No momento, ele só dormia.