Tom 9

[Esse é o nono capítulo. O resto, que começa no capítulo 0, pode ser encontrado AQUI.]

Após de comer e passar algumas horas assistindo seriado, Tom acabou cochilando no sofá. Acordou poucas horas depois com seu celular gritando Never Gonna Give You Up, de Rick Astley. Ninguém entendia porque ele tinha um ringtone tão estranho, ele tampouco se importava muito em explicar. Foi atender e viu que era Jameson. O fogo que seu amigo tinha era inacabável e incontrolável. Sábado nunca era dia de ficar em casa e não havia desculpa. Se fosse depender de Tom, o mais longe que ele iria era na Ovelha Negra tomar uma cerveja antes de findar a noite, mas seu amigo sempre aparecia com alguma proposta para fugir do aconchego de seu lar.

A história de hoje era o show de uma banda de rock local. Tom não lembrava direito nem o que era, mas tinha certeza de que sabia mais da banda do que seus amigos que iam. Na verdade a maior parte deles nem se importava, valia mais a festa, as pessoas e a bebedeira, o som virava consequência. Uma característica de Tom era ter uma memória que conseguia guardar mais detalhes do que ele precisava sobre bandas, gêneros musicais e o mundo da música. Muitas vezes era chamado de chato porque em momentos de embriaguez não conseguia parar de conversar sobre o artista X que estava tocando na banda Y, mas gravou o CD Z com o seu outro amigo. Talvez fosse o assunto certo na roda errada, mas era difícil parar, principalmente depois da quinta cerveja.

Tom não estava 100%. Sentia que seria melhor se ficasse quieto em casa, mas procurava nunca negar os convites de Jameson. O cara raramente arranjava uma roubada e esse “Pedigree” dele deixava Tom mais tranquilo. Vasculhando o Facebook do show/festa/quase-micareta viu que Roberta tinha confirmado sua presença. Ele não sabia como se portar em relação a isso, o misto de querer e não querer o deixava angustiado. Tinha que entorpecer seus sentimentos um pouco e abriu a primeira cerveja. Tinha passado uma ótima noite sem pensar nisso e pela segunda vez esse sentimento estranho voltava para fazer seu coração palpitar.

Uma semana parecia ter sido o suficiente para esquecer todos os meses de sofrimento sem Marina. De certa maneira, sentia-se um viciado. Foi necessária apenas a reinserção de uma pessoa na sua vida e toda uma necessidade tinha sumido e se canalizado em Roberta. Devia chamar isso de vício do amor, síndrome da paixão aguda ou qualquer nome de banda de brega. Tom sabia que não era assim com ele normalmente, mas de vez em quando parecia impossível curar-se. Desapego era uma coisa complicada.

Abriu uma segunda cerveja e começou a se arrumar. Não que isso levasse muito tempo, mas Jameson chegaria em vinte minutos e Tom não gostava de se atrasar. Pouco tempo depois, ja estava quase pronto para sair. As mensagens trocadas com seu amigo significavam que teria cinco minutos para vestir sua calça e calçar seu tênis, exatamente como planejado.

Jameson chegou dirigindo o carro e seu motorista Dinho estava no outro banco da frente, com Alice sentada no banco de trás sozinha. Sempre que estivesse sóbrio, por mais que Dinho estivesse do seu lado, Jameson tinha que estar dirigindo. Desesenvolvia suas habilidades de piloto do asfalto desde sua adolescente, época em que tinha que visitar sua família no interior. O problema era que a necessidade tinha virado vício e seu motorista dirigia menos que o seu patrao.

Alice, como sempre, estava fazendo cara feia e tinha razao. Jameson estava longe de ser o motorista mais prudente da cidade, além de ter um gosto musical demasiadamente eclético, contando com uma seleção especial para impressionar as mulheres. Nem Alice nem Tom achavam isso interessante ou sequer efetivo, mas era Jameson e ele não iria mudar.

Tom 5

[Já leu Tom nº 0, nº 1, nº 2,  nº3 e nº4? Mudaram algumas coisas, principalmente o 4.]

Tom não sabia cantar. Isso não era novidade e pouco lhe importava no momento. Na verdade, nada importava, nem a música, pois parecia que ele estava perdido no tempo e no espaço ao cantar Careless Whisper, de George Michael, com a maior empolgação da sua vida. Estava eufórico e a música, por si só era depressiva. Não fazia sentido, mas o sax imaginário era mais forte do que a razão. Ele suava e estava feliz, sabia disso. Quando acabou a música, só três pessoas do quase vazio bar aplaudiram: os funcionários-amigos Reginaldo e Joab, e Roberta, que ainda estava sentada quando a música acabou, mas logo se levantou para pedir a vez no microfone. Ela ainda não estava no mesmo nível de transe de Tom, mas as tequilas estavam começando a surtir o efeito que ela queria.

Ela não estava tão animada como Tom. Colocou Sweet Times do Portishead. Era estranho como aquele Karaokê tinha algumas seleções inimagináveis. Deus sabia lá a quem Seu Juan tinha comprado ou como tinha colocado aquelas músicas. Ela sim sabia cantar. Assim que ela começou o refrão “cause nobody loves me… it’s true”, as pessoas começaram a prestar atenção de verdade. O sofrimento na voz dela era belo, acalmou o ânimo de Tom quase instantaneamente. Ela poderia até se chamar Marie ou ate mesmo Beth, de tão sincera que ela estava sendo. Uma aura foi construída no bar como nenhuma vez tinha sido visto. Normalmente pediam para cantar as músicas mais conhecidas, fossem as que tocavam na rádio no momento, fosse as que tinham tocado na rádio há decadas. “Who am I, what and why, cause all I have left is my memories from yesterday, on these sour times…”. As lágrimas escorriam dos olhos dela, mas o que ninguém prestava atenção era que Tom estava mais tocado ainda. A música caiu como uma luva em seus sentimentos que estavam inebriados pelas cervejas após o trabalho.

Ele sentava, olhava para ela. Não tinha outra reação a não ser segurar a sua cerveja com bastante força e segurar o choro. A música acabou. Todos aplaudiram de pé. Ela não tinha muitos motivos para comemorar, mas ficou feliz com a reação positiva. Todos ficavam, Tom sabia. O reconhecimento público é imprescindível para a realização de uma pessoa.

Roberta sentou, eles passaram alguns instantes sem se falar. Sorriram um para o outro, se encararam por mais alguns instantes. Reginaldo chegou com duas cervejas geladas, disse que era o melhor para não prejudicar a garganta e rapidamente se retirou. Tom estava encantado e parecia que nada mais chamaria sua atenção na noite. Roberta estava aliviada e sentia-se bem ao ver que tinham gostado de vê-la cantando. “Isso foi sensacional! Uau, nunca consegui me emocionar num karaokê. Não sei nem o que dizer..”. Tom parou, ia começar a gaguejar e sabia. Roberta abriu um pequeno sorriso e disse: “Tom, muito obrigada pela noite. Era disto que eu estava precisando. Se cuida…”. Roberta se levantou, deu um beijo na testa de Tom e saiu sem nem pagar a conta. Ela era mais rica que Tom, não era esse o problema. Era só a habitual provocação característica dela. Isso atiçava Tom, ele era um cara certinho.

Ainda ficou alguns instantes pensando na vida, quando chegou Reginaldo com a saideira e disse “É bronca… fantástica essa menina canta bem mesmo”. Tom tentou esboçar alguma reação, mas estava difícil. Sabia que era a hora de partir. O bar fechava e a vida tinha que seguir. Levantou-se. Ele não conseguia tirar a música da cabeça “Take a ride, take a shot now, ‘Cause nobody loves me, it’s true, Not like you do”, era quase um feitiço.

Tom

Já leu Tom nº 0, nº 1 e nº 2?

O sono veio fácil, mas o problema foram os sonhos. A tempestade de pensamentos que tinham ocupado a cabeça de Tom esses dias ainda não tinha se dissipado. Porém, parecia que o tempo ia melhorar. Ele viu que podia dar a volta por cima e recuperar o bom humor e o prazer pela vida.

Tom acordou e, instintivamente, foi olhar o seu computador. As pessoas achavam estranho quando ele contava desse hábito, mas era algo tão comum e óbvio para ele: lá tem as horas, as notícias e tudo que lhe interessava ao acordar. Viu que eram quase 10 horas da manhã, o seu horário comum de acordar. Tomou banho, escovou os dentes, ligou o som e começou a trabalhar. Ele ignorava o café da manhã, pois não gostava muito de pão, ovo e essas coisas que se comem no desjejum. Por isso, preferia acordar mais tarde e só se alimentar entre as 12 e as 13 horas.

Ele raramente sentia que seu trabalho era entendiante, afinal era o que ele gostava de fazer, mas, excepcionalmente, não estava nem um pouco a fim de fazer uma análise sobre a eficiência da campanha publicitária da marca X de bebidas. Sua cabeça estava em outro mundo. Tom queria voltar à Ovelha Negra e conhecer aquelas meninas que se divertiam tanto sem se preocupar com os problemas da vida. Talvez elas soubessem a solução para uma vida mais feliz, talvez elas só estivessem expondo um lado da história. Tudo isso era um grande enigma para ele, mas que lhe dava muita vontade de decifrar.

Apesar de sua cabeça se revirando e estando bem mais a fim de pensar mais no fim do seu namoro, Tom era profissional. O que lhe fez ter uma clientela fiel foi sua qualidade. O que lhe fez não ganhar dinheiro foi a sua falta de capacidade em saber como ganhar dinheiro com seu trabalho. Fazia algo que gostava e executava com maestria, mas não sabia a melhor forma de ganhar dinheiro com isso.

Ele sabia que não tinha muito para onde correr, tinha que trabalhar e focar sua cabeça no seu ganha-pão. Continuou fazendo suas pesquisas pela internet e anotando resultados de várias ações publicitárias que foram iniciadas há pouco tempo, mas que necessitavam de resultados, seja para impressionar os chefes, seja porque as ações realmente necessitavam ser mensuradas com tanta velocidade. Não importava para ele, já tinha virado rotina, era só coletar as informações e manter relatórios.

Certo momento, recebeu uma mensagem de Roberta, uma analista de marketing de uma das empresas para a qual Tom fazia seus freelas. Era do jeito que o agradava e que ele mesmo achava que merecia, pois também tinha seus defeitos. Do mesmo jeito que amava música, era quase uma extremista xiita em relação a gêneros musicais. Pouca coisa era pura para ela. Adorava livros, odiava escritores muito mainstream, como gostava de chamá-los. Se o blues, o rock e a música clássica eram os deuses, a música eletrônica e o pop comercial vinham do inferno. Se Dostoiévsky, Fante e Bukowsky eram os reis, J.K. Rowling, Dan Brown e Stephenie Meyer eram aqueles que tentavam destruir o império do conhecimento e do bom senso. Ao mesmo tempo em que seu corpo e sua face transmitiam uma aura gentil e suave, sua personalidade muitas vezes imponente não agradavam a Tom. Ele odiava extremismos.

Quando se conheceram, há quase um ano, a personalidade retraída e mistériosa do analista de mídias sociais quase eremita a atraiu por ser bastante intrigante. Infelizmente, para ela, ele não a deu muita atenção, pois estava num relacionamento com alguém de quem gostava muito. Infelizmente, para ele, Roberta gostava de atingir seus objetivos e demorou para desistir de falar com Tom. Só parou mesmo quando entrou em um relacionamento conturbado com seu ex-chefe, que a tinha cortejado desde que era estagiária. Os meses de insistência fizeram com que Tom pudesse entender a personalidade agitada e imponente dela, mas não era o que ele buscava no momento. Queria paz e futuro com sua namorada.

Hoje, Tom estava solteiro. Há pouco tempo, verdade, mas solteiro. A mensagem que estava no seu smartphone era provocante, mas não podia atender tão urgentemente o chamado, pois tinha que finalizar um relatório justamente para a empresa de Roberta. Ela queria marcar um café com ele, retomar as conversas que tinham parado há vários meses. Agora, os dois estavam solteiros. Tom tinha visto no Facebook dela. A vida social agora tinha seu próprio outdoor. Se chamava rede social, o lugar onde você exibe o que quer, mas muitas vezes não percebe quando passou do limite entre o pessoal e o privado, que deveria ser reservado para o mínimo de pessoas possível. Era a sociedade do exagero, da fama e dos holofotes. E certa parte desta história era o trabalho de Tom, o que o levava sempre a pensar quais motivos faziam as pessoas se expor tanto. Respondeu a ela dizendo hoje não dava, quem sabe amanhã?

Continuou trabalhando e, ansioso, pensava em qual seria a resposta dela. De vez em quando só se tem uma chance.

Tom

2.1

Tom sentia-se melhor da ressaca que lhe assombrou pela manhã. As brisas da granja, as cervejas geladas e o churrasco o tinham feito esquecer as consequências da noite anterior. Dirigiu tranquilamente até em casa para tomar banho e ir para a Ovelha Negra, onde provavelmente ficaria esperando Alice por mais ou menos uma hora, dada a combinação entre seu hábito por chegar cedo nos lugares e a demora para a sua amiga se arrumar.

Pronto, logo foi à sua segunda casa. Encontrou Reginaldo, o garçom mais antigo da casa, arrumando justamente sua mesa. Realmente, não tinha como Tom não se sentir em casa estando na Ovelha Negra. Pediu uma cerveja e sabia que era o pedido certo. Nos vários anos em que morava ao lado do bar, nunca tinha vivenciado uma garrafa que não viesse na temperatura satisfatória. Isso, junto à música bem selecionada e um público que admitidamente preferia passar a noite sentado em suas mesas conversando sobre coisas que geralmente não eram do interesse geral, tinha feito a fama do estabelecimento. Lúcia, a cozinheira, também caprichava e suas habilidades iam desde um arroz com feijão perfeito aos melhores petiscos de boteco. Embora a Ovelha Negra tivesse um ar um pouco mais requintado do que o de um boteco, o dono, seu Juan, sabia que nada acompanhava melhor uma cerveja do que uma porção bem feita de calabresa com fritas.

Tom não tinha fome. Seu maior desejo era de poder contar tudo que havia acontecido com Marina para Alice. Aqueles acontecimentos estavam perturbando a cabeça e o coração dele, causando um sofrimento imenso. A cada pessoa que entrava pela porta do bar, Tom procurava alguma semelhança com sua melhor amiga. Esse ritual demorou três garrafas de cerveja, o suficiente para amenizar um pouco a dor em seu coração, mas não era o suficiente. Ele precisava de mais. Já tinha chegado à conclusão de que não era a bebida que o faria esquecer tudo. A bebida, por sinal, já o tinha causado uma ressaca pesada. Alice entra pela porta.

2.2

Finalmente. A pessoa de quem Tom mais precisava tinha chegado. Ninguém melhor do que ela para entender os sentimentos dele e o comportamento feminino. Ela sentou-se e pediu um chopp. Sempre discutiram se a suavidade do chopp poderia ser superior ao sabor de uma cerveja. Cada um preferia sua manifestação da bebida que julgavam superior a qualquer outra.

Tom foi abrindo o jogo logo, como era habitual:

“Me ferrei. Depois de tanto tempo de dedicação, onde eu tava quase entregue, ela me larga. Já tava perto de propor casamento a ela, estava começando a pensar nisso e tudo mais. Não sei como isso aconteceu. Dois anos e eu não tive a capacidade de perceber a mudança no comportamento dela. E que porra é essa de relacionamento que começou ANTES do meu? Como foi possível ela esconder isso por tanto tempo? E para que diabos ela queria alguma coisa comigo então?  Não era dinheiro, ela tinha mais do que eu. Não era prestígio, pois eu só conheço praticamente o povo do bar, algumas pessoas com quem trabalhei e uns amigos da internet. O que pode ter acontecido??”

Alice não respondeu prontamente. Estava tão impressionada quanto Tom pelo ocorrido. Marina era bastante interessante e ela e Tom faziam um bom casal. Por não ser efusiva, não vivia demonstrando seu amor, mas no fundo as pessoas acabavam por sentir que o relacionamento deles daria certo. Mas parecia que ela sabia manipular bem suas emoções e sua imagem perante os outros, incrível isso. Ela retomou seu papel de melhor amiga e o tentou acalmar:

“Tom, sei que foi uma puta sacanagem dela. Sei também que é algo bastante estranho e não conheço outro caso em que isso tenha acontecido. Porém, acho que a solução é a mesma para qualquer caso: tentar esquecê-la ocupando a cabeça com outras coisas, conhecendo alguém ou escrevendo um livro. Dizem que funciona.”

Aparentemente, não era o que Tom esperava ouvir, embora as alternativas fossem escassas.

“Porra, como tu me dizes isso? A última vez que fui tentar esquecer dela, tomei meia garrafa de absinto e acordei com uma das piores ressacas da minha vida. Não sei nem como eu vou achar alguém. Tu sabes que não é fácil pra mim, não saio numa balada como qualquer um e vou me agarrando com qualquer maria sem dente que aparece. É preciso conhecer, aprender a admirar e apreciar. Meus últimos relacionamentos começaram sentados nessa mesa aqui. Tampouco pretendo mudar meus hábitos de prospecção, embora eu reconheça que uma distração hoje seria muito bem vinda.”

Alice entendeu o que Tom queria, mas não havia muito que pudesse fazer.

“É, mas não tem como eu ligar para alguma amiga minha num domingo à meia noite para vir num bar. As que prestam ou devem estar dormindo, ou já estão em outro bar. Provavelmente quem estiver disposta a sair de casa essa hora estão muito desesperadas, e você sabe que não é o tipo de mulher que o velho Tom aprecie, – ele deu um sorriso- então é melhor você ter calma.”

Tom chamou Reginaldo e pediu mais uma rodada para ele e Alice. Enquanto o garçom vinha, deu uma olhada para ver quem estava na Ovelha Negra nessa noite. Quatro mesas, além da dele, estavam ocupadas: uma por José Artur, o alcóolatra que estava todos os dias no bar e que sua bebedeira eterna era paga pela aposentadoria do governo, o casal Sidney e Derci, que eram bons frequentadores, embora fossem casados, cada um com uma pessoa diferente, e duas mesas com pessoas desconhecidas. A primeira, ocupada por um grupo de 4 amigos que pareciam entretidos demais em suas conversas, fossem-sobre-o-que-fossem. A segunda tinha três senhoritas. Não pareciam ser da cidade, pois estavam se deliciando com drinks que geralmente estavam no cardápio só para cumprir tabela.

Elas eram, para Tom, razoavelmente bonitas. A que mais se destacava tinha cabelos que estavam no processo de deixarem de ser castanhos, voltando ao preto original. Algumas pessoas iriam contra isso, mas ele achou o efeito bastante interessante. Tom sentia-se um pouco incomodado porque estavam conversando muito alto e cantando as músicas que estavam tocando no sistema de som do bar. Ao invés de ficar tão irritado, como seria o normal, ele viu o sorriso no rosto delas, principalmente no daquela que ele tinha intitulado mentalmente ‘líder’. Alice permanecia calada enquanto percebia seu amigo observando atentamente o trio de senhoritas se divertindo sem nem perceber, ou mostrar perceber, que estavam sendo julgadas a cada ação. Tom, depois de alguns minutos, chegou à conclusão:

“É, eu queria recuperar esse prazer em viver que elas têm.” Acabou de tomar seu último gole de cerveja e se despediu de Alice:

“Vou para casa. Preciso descansar um pouco e botar os pensamentos em ordem. Vou ficar melhor, te garanto.”

Abraçou Alice e foi embora. A conta dele na Ovelha Negra só era paga no final do mês.

Tom nº1

1.1
O sol apareceu e Tom acabou acordando. O calor era grande na sala, não havia ventilador ligado nem nada. Além do mais, não estava se sentindo tão bem, mas isso era meio óbvio: beber meia garrafa de absinto sozinho não faz com que a pessoa se sinta muito no day after. Levantou-se quase que pulando e se dirigiu para a geladeira, onde alguns copos de água de coco industrializada se encontravam. Ele tinha aprendido com a vida que esse era o melhor remédio para ressaca. Se sobrasse espaço no estômago e no espírito, alguma comida cairia bem.

Tom não gostava de acordar cedo. Para ele, o mundo deveria começar a funcionar a partir das 10h e ele próprio quando desse meio dia. Só acordava antes desse horário se acontecesse duas coisas: algo que só pudesse ser resolvido de manhã ou quando bebia, pois sempre acordava com sede e sentia dificuldades em dormir. Como já estava acostumado com isso, foi para dar uma caminhada pela rua, pois sabia que o sol, o vento e o exercício físico sempre o ajudavam a se recuperar das sequelas da noite anterior. Chegou até a padaria que ficava um pouco mais longe do que ele gostaria, mas que tinha o melhor pão da vizinhança e isso já era um forte argumento. Lá mesmo tomou café da manhã. Sentia que quanto mais comia, mais vontade de comer tinha. Sabia que isso ia passar, era só ter calma.

Em sua cabeça sabia que hoje haveria mais um evento a comparecer sem querer tanto: o encontro dos seus colegas dos tempos de escola. Ele não achava que seria tão proveitoso para ele, pois provavelmente cada um ficaria contando de seus feitos profissionais e pessoais, acabando que, chegando na hora de Tom falar, não haveria mais nada tão interessante a se dizer. Quem gostaria de saber sobre a vida de um consultor de internet e comportamentos? Afinal, ele não tinha um palácio a beira-mar nem um carro de cem mil reais. O mais perto disso que ele chegava era morar num apartamento a beira-bar e um carro que cumpria com a sua função principal: transportar Tom.

1.2
Eram onze da manhã de um domingo e chegou no local marcado. Era longe de casa, porém era uma granja bastante confortável no campo. O vento era forte e isso ajudava a receptividade do local. Como sempre, Tom tinha sido um dos primeiros a chegar. Era uma das manias dele: era pontual, ao contrário de praticamente quase todos que conhecia. Apesar disso ser considerado pela maioria como bom, nem sempre era a melhor coisa a se fazer. Muitas vezes gerava momentos e conversas que refletiam a falta de intimidade entre ele e a pessoa com a qual estava conversando.

Isso aconteceria mais uma vez hoje e ele sabia, mas não se sentiria confortável em chegar atrasado. O dono do local não tinha sido um amigo tão próximo. Enquanto Tom preferia andar com um grupo pequeno de amigos bastante próximos e conversar sobre música e assuntos do cotidiano, Carlos, o Cal, era do grupo dos mais abastados. Desde antes de poder oficialmente dirigir, Cal já tinha seu meio de locomoção próprio e por causa disso era bastante popular. Para Tom, popularidade não significava muita coisa. Ao mesmo tempo em que via pessoas fúteis sendo tidas como as mais conhecidas e cultuadas do colégio, observava que havia algumas com certa bagagem cultural, intelectual e comportamental que mereciam respeito.

No momento em que chegou na granja, foi recepcionado pelo caseiro de Cal, que o indicou aonde estacionar. Tom não sabia se era intencional, mas foi instruído a parar justamente ao lado de um conversível que valia o suficiente para comprar o apartamento de Tom e lhe dar um carro zero quilômetro. Ele procurou ignorar o fato e se direcionou a Cal. Viu ainda que alguns dos amigos mais próximos do host tinham chegado também.

A conversa inicial foi tranquila. “Sinta-se em casa, pegue um drinque e vá conversar com o pessoal”. Nesse momento, Tom procurou fazer as contas de quanto tempo fazia desde que ele havia trocado alguma palavra com os que já tavam na mesa. Ele havia concluído o colégio aos 16 anos e agora tinha 27. Provavelmente todos que se encontravam na mesa no máximo tinham mandado um feliz aniversário para ele pela internet, mas uma conversa cara a cara em que o que se fosse falado não fosse meros termos de cordialidade, não havia acontecido há mais de 10 anos.

Foi fácil reonhecer as pessoas pelos rostos, pois na era da tecnologia todos tinham acesso a pelo menos um trecho da vida pessoal de seus amigos. João Carlos, Gustavo, Raquel, Ana Maria e Thiago estavam bastante acomodados e conversando. Tom não tinha tido muito contato com eles no colégio e muito menos nos últimos anos. Antes de chegar na mesa, parou no meio do caminho para pegar uma garrafa de cerveja. Ao sentar-se, por mais inconfortável que estava, tentou ser sociável e começou a puxar papo. Muito do que foi falado todo mundo já sabia. Quem trabalhava aonde não era mais mistério na era da internet. As pessoas sentiam prazer em espalhar para o mundo o que estavam fazendo, principalmente as mais bem sucedidas.

Tom tentou puxar o máximo de conversas possível para fazer o tempo passar e seus amigos chegarem. Quando sentia que estavam chegando à futilidade habitual dos seus ex-colegas, procurava ir atrás de outra cerveja ou do banheiro. Foi um pouco mais de uma hora até o reforço chegar. Depois disso, viu que a tarde de domingo poderia até ser proveitosa, pois estava junto a alguns de seus melhores amigos que o tempo infelizmente os tinha separado.

Se juntou à mesa de Rafael, Victor, Alice e Fernanda. Sentiu-se à vontade. Rafael e Victor haviam sido seus parceiros quase inseparáveis. Alice era sua quase-irmã em quem ele confiava toda sua vida, segredos e pensamentos. Fernanda foi por vários anos sua paixão secreta, mas no decorrer dos anos nada acabou acontecendo. Para a sorte de Tom. Alice formou-se em medicina e era uma neurocirurgiã muito bem sucedida. Victor e Rafael abriram uma empresa de distribuição de bebidas, o que aliava a disposição para festa dos dois com o talento que tinham para logística e finanças. Todos eram bem sucedidos, menos Fernanda. Ela era a trouble child do grupo. Fez curso de publicidade por um ano, mas descobriu que não era o que queria. Achava que precisava de mais liberdade artística e foi para o curso de Design. Se sentiu mais à vontade, mas não havia se encontrado totalmente. Chegou à conclusão de que queria ganhar a vida sendo artista. Gostava de pintar e de escrever poesias, o que no final resultava em algumas exposições de arte e livros de poesia ilustrados. Tom se indagava o quanto ela realmente conseguia com isso, pois não era famosa e não tinha muitos contatos na high society. Viver de arte não era uma coisa muito legal e ele sabia disso.

Imaginava o que poderia ter acontecido se tivessem tido algum relacionamento, mas havia sido somente imaginário. Tom nunca havia contado isso para ninguém, nem para Alice em seus maiores momentos de sinceridade. Por mais transparentes que tentassem ser um com o outro, ambos sabiam que havia alguns segredos que não eram passíveis de serem repassados para outra pessoa. Sabiam e se respeitavam.

Alice, por sinal, era a que mais mantinha contato com Tom. Eles se encontravam pelo menos uma vez por semana na Ovelha Negra, pois ela adorava o chopp de lá e eles sempre tinham algo para conversar. O comentário principal era de que ela poderia ser cardiologista, pois sempre cuidava dos problemas do coração dele. Era aquela palavra de conforto que o ajudava a se recuperar de alguns baques que a vida lhe propiciou. Infelizmente, ela estava viajando quando Tom foi largado por Marina.

Agora, mais do que nunca, ele precisava de um ombro amigo. Combinaram de ir juntos para a Ovelha Negra conversar.

Tom

Prólogo parte 1
Era mais uma noite chuvosa para ele. Noites chuvosas significavam a paz de seu lar e alguma coisa para o relaxar. Geralmente, música alta e alguma cerveja. Porém, essa noite não era igual às muitas outras. Sentia-se impotente, incapaz de superar seus próprios sentimentos e ter forças para seguir a vida. O ritmo da música estava mais lento, o clima, mais denso. Fez uso de um copo baixo e nele derramou absinto. Transformou a fada verde numa espécie de uísque e a apreciou. 

A dor era grande, a perda também. Ele precisava de uma anestesia para tanto sofrimento e, com certeza, a solidão não ajudava. Por mais que já fosse acostumado a viver só, a ter sua casa organizadamente desorganizada, ele precisava de alguém por perto para tomar conta.

Manteve o mesmo ritmo a noite toda: bebia um copo de absinto a cada disco que ouvia. Estava sentado em uma poltrona virada intencionalmente para a janela. Observou os pingos batendo na janela enquanto lia as mensagens que trocaram pela internet e pelo celular. Depois de várias doses amargas de realidade, cedeu para o cansaço mental propiciado pelo absinto. Dormiu.

Prólogo parte 2
Seu trabalho era predominantemente solitário. Fazia quase tudo que necessitava em casa, no seu até então confortável lar. Investiu quae tudo que ganhava neste apartamento, pois era ao mesmo tempo o lugar onde dormia e onde trabalhava, poucas coisas importavam mais.

Mantinha uma restrita lista de amigos com os quais compartilhava seus principais interesses: música, bebidas, comidas e pessoas. Um de seus maiores interesses, quase que paradoxal ao fato de gastar boa parte do tempo sozinho, era observar as pessoas. O fazia das mais diversas maneiras, desde o momento em que fazia compras no supermercado a dois quarteirões de seu apartamento, a ver como as pessoas se relacionavam no que era o maior bicho de sete cabeças da época: a internet e suas redes sociais.

Por mais natural que fosse a evolução das maneiras de se relacionar em grupos, que foi alavancada pelo forte desenvolvimento das telecomunicações, era comum ver vários indivíduos protestando sobre privacidade, exposição indesejada e outras coisas que ele julgava não ter muito nexo. O pensamento era simples: você exibe o que quer. Na internet, ninguém estava obrigando as pessoas a dizerem coisas que eram para ser segredos. Você era responsável por todas suas ações, não tinha o que discutir.

Ele tinha tornado seu dia a dia bastante imprevisível. Trabalhava onde quisesse e na hora que lhe fosse mais conveniente. Isso sem nunca atrasar nem desapontar nenhum cliente. Seu trabalho era observar como os grupos de pessoas viviam e no que isso refletia para os seus contratantes. Muitas vezes era um trabalho chato, repetitivo e estatístico, entretanto lhe agradava muito o fato de ser pago para fazer uma de suas atividades preferidas: observar os diversos comportamentos das pessoas.

Seus amigos advinham principalmente da internet. Antes os conhecer pessoalmente já tinha trocado milhares de mensagens com eles, fazendo com que a primeira vez que se reunissem fosse só a solidificação de relacionamentos que já tinham começado há bastante tempo. E para ele era algo lógico: o mundo digital era o mesmo do mundo ‘real’. A ausência do contato físico não era tão significativa assim, pois as conversas eram as mesmas, embora fosse complicado em alguns momentos explicar algumas expressões e sentimentos.

Sua vida amorosa era alimentada por relacionamentos iniciados quase sempre no mesmo lugar: a Ovelha Negra, um aconchegante bar que ficava no mesmo quarteirão que o seu e que sua proximidade casava perfeitamente com a indisposição de se movimentar para locais longínquos que geralmente lhe ocorria. Era habitué do bar, conhecia os 4 garçons e a caixa pelo nome, uma de suas melhores amigas era a gerente.

Lá, tinha sua mesa quase que cativa. Aparecia pelo menos três vezes por semana, nem que fosse só para tomar o último drink antes de dormir. Estava tão em casa na Ovelha Negra quanto em seu apartamento. Não se sentia confortável em ter a iniciativa em relação às senhoritas que o interessavam. Geralmente, preferia manter-se como uma pessoa misteriosa, porém inteligente e bem humorada. A vida, principalmente no aspecto amoroso, não lhe tinha sido muito bondosa. Ele já sabia que as coisas não eram justas e que só restava fazer o certo para algum dia o certo acontecer com ele.

Hoje, em sua casa, dormia com o coração apertado porque a quem ele mais tinha dedicado atenção e carinho nos últimos meses o tinha trocado por outro. Antoine, o Tom, esperava que seu coração sarasse com o absinto e o tempo. No momento, ele só dormia.

Os professores acabaram com minha reputação

Desde que comecei a estudar para o concurso do Ministério da Fazenda – Receita Federal, eu entrei num curso preparatório intensivo para esse concurso. Chegando lá, só vi um amigo conhecido, mas ele não passou nem 3 dias estudando. Não conhecendo ninguém, nem querendo conhecer alguém, não fiz amizades, sempre entrei na sala mudo e sempre saí calado. Tampouco nunca fui de fazer perguntas, sempre fiquei na minha, já que não havia nem necessidade, a minha sala pergunta tudo que é necessário e desnecessário[principalmente].

Não imagino o que o povo pensava de mim. Imagino que fossem os adjetivos mais estranhos e obscuros possíveis. Eu era o anti-social de lá. Quando interagia com alguém, era simpático, sem deixar de ser anti-social, sem a mínima pretensão de criar laços de amizade. Acho que não sei o nome de 10 pessoas de lá, e os que sei foi porque o professor perguntou, já que eu nunca tinha dado um oi a alguém sem ser em resposta.

Nos intervalos, de vez em quando fazia algum lanche rápido [recentemente descobri que lá na rua tem uma senhora que faz deliciosas tapiocas de frango com queijo, verduras e orégano, hmmm] e, quando a sala permitia [me sentia num inverno siberiano, a sala fazia um frio que nem sempre o casaco que eu levava aguentava], retornava para estudar um pouco enquanto o professor não voltava. Se não estava estudando, o mais provável é que estivesse catucando o celular, já que por ele dá pra falar com quem eu realmente conheço e me comunico.

Pois bem, depois de um mês nesse ‘esforço’ para não fazer muitos contatos, no último sábado chegou o professor de direito constitucional Augusto Alves. Ele, ótimo professor, com aulas sempre empolgantes e engraçadas, gosta que os alunos leiam os artigos e os incisos da cosntituição em voz alta e, para isso, sempre chamava alguém para puxar a leitura. O último escolhido tinha sido Toni, um cara que deve ter 5 vezes mais massa muscular que eu e sempre vestia alguma camisa do Sport. O professor decidiu inovar e escolheu logo quem? ‘Seu nome, por favor?’ – ‘Ugo..’ – ‘Ugo, tua vez de puxar a leitura. Comece!’. E aí lascou. Não que eu não tenha gostado, eu sempre lia de qualquer jeito. Augusto passou a aula toda me chamando, fazendo brincadeiras com a minha idade, com meu cabelo, com tudo. No final da aula, todos sabiam meu nome e meu disfarce como anti-social tinha caído. Maldito!

Para completar, chego eu no domingo às 8h30 de la matina no NUCE pra ver a aula de direito administrativo de Michel Marçal, professor nem-tão-empolgante-assim que se encarrega de dar aula nessa penosa manhã de domingo. Eu, que tinha ido à segunda noite do Abril Pro Rock 2009 e chegado em casa pouco após as 3h30, estava quase dormindo em aula. Foi difícil ficar acordado, mas nada que uma lata de coca-cola no intervalo não ajudasse. Quando voltamos à aula, o professor escolheu alguém da sala pra abrir um restaurante fictício. Quem foi o escolhido? Advinha… E tome o meu nome sendo usado no meio da sala. E tome todos conhecendo o anti-social indefeso, que pouco poderia fazer.

Depois desse fim-de-semana sendo popular, na segunda-feira já estavam chamando meu nome e puxando conversa comigo, que beleza! A casa caiu, três porquinhos. O anti-social já era, não tem nem pra onde correr. Só me resta responder educadamente a todos lá da sala e ir mantendo a simpatia, porque o disfarce de anti-social já era, que pena. =(

Ugo.

David Bowie – Alladin Sane [muito bom, principalmente ‘Let’s Spend the Night Together’]